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16 avril 2011

Das virtudes da vadiagem

O título é irônico e provocativo. Mas se trata de ensaio teórico escrito por nosso membro Ubirajara Passos, publicado em outubro de 2006, em seu blog pessoal, que analisa a fundo, questionando as crenças mais inocentes e estabelecidos, o quotidiano de gado dos trabalhadores em geral:

                                  Não fôssemos animais infelicitados por um cérebro capaz de ir muito além do conhecimento imediato e imergir nos mais refinados recantos do universo da possibilidade e da emoção, e o trabalho poderia justificar-se como uma “razão de viver” e não a tortura inevitável que a necessidade física da sobrevivência, e da existência em um mundo feito de matéria, nos impõe. Muito ao contrário da pregação hipócrita de seus maiores defensores (bons burgueses seríssimos, de veias túrgidas de gordura, que construíram suas vidas no árduo e austero “trabalho” de amealhar fortuna à custa do trabalho alheio, ou recalcados líderes de “esquerda”, contaminados pelo moralismo das sacristias), o embrutecedor e massacrante labor nada possui de virtuoso, dignificante ou realizador! É antes um entrave a seres forjados, pela condição que lhes deu a evolução biológica, para o prazer e a aventura e não para a insípida e tediosa rotina de autômatos de carne e osso. 

Seja, porém, pela necessidade de fugir ao suplício da faina diária e recuperar, ainda que abastardado, o paraíso do prazer (só alcançável no mais genuíno e absoluto ócio), seja pelo deleite especial que lhes proporciona o exercício do sadismo, os mais aguerridos e astutos dentre nós arrojaram-nos, historicamente, a obrigação de não apenas mourejar contínua e dolorosamente por nossa própria vida, mas também pela deles, sob cuja prioridade passamos a existir. 

                            Não bastasse, portanto, o séquito natural de incômodos decorrentes da atividade necessária, rotineira e, intelectual e emocionalmente, limitada e aborrecida (como o afã doméstico) que nos inflige a nossa própria condição mortal individual, o advento da dominação (na forma das correntes físicas da escravidão ou institucionais e ideológicas da servidão e do emprego) transformou o que era um purgatório inarredável no mais completo e exasperante inferno! Se o trabalho “livre” guarda ainda alguma possibilidade de prazer , conforme a solicitação intelectual ou estética nele envolvida (um artesão de marcenaria ou um oleiro poderá apaixonar-se pelas “obras de arte” que produz no seu torno), o exercido sob as patas do patrão elimina qualquer possibilidade de manifestação autêntica da personalidade e acaba por condicionar todo o restante de nossas vidas.

O mais dramático, no entanto, não é o embrutecimento inevitável presente na lida, mas o fato de que, não trabalhando, colocamos em risco a nossa própria sobrevivência física. Deitar-se, permanentemente, à rede, meditando sob os insondáveis desígnios e mistérios da alma humana e da vida, e apreciar o instigante desfile da luz, da brisa e do luar, pode se constituir num convite certo à morte... ao menos que pertençamos à classe daqueles que obrigam os demais a não ter um único momento para contemplar o encanto de quadris bamboleantes, absortos na severa “diversão” de se esbodegar pelo patrão.

É este caráter categoricamente indispensável do trabalho que cria a possibilidade (mesmo numa sociedade em que a tecnologia avançadíssima poderia nos aproximar a todos do Éden – reduzindo ao mínimo necessário o tempo e a natureza penosa da ocupação) de submetermo-nos à incessante rotina de humilhação, cansaço, imbecilidade e obediência cega e reverente diante dos mais vaidosos e burros feitores que executam a vontade dos nossos “senhores”.

A divisão do trabalho, o irracionalismo “lógico” da produção em série, ou a “necessidade” de atendimento eficaz e célere da demanda de serviços, nos transformam em zumbis, mais inconscientes do que as próprias máquinas operadas ou as rotinas formais dos procedimentos de escritório. Mas, muito além da inerente despersonalização por eles imposta, é a disciplina, fria e regulamentadora, da “ética laboral” a causa mais profunda, e onipresente nos vários ramos da atividade humana considerada “útil”, dos tormentos na luta pelo pão que o diabo (ou Deus?) amassou de cada dia.

Não há maior infelicidade para um ser pensante e sensível do que, além de ter negado o prazer e o mínimo de condições materiais de existência em nome do luxo e do capricho alheio, ser submetido, durante a maior parte de sua vida desperta, a atuar não segundo as inspirações e motivações da inteligência e da emoção próprias, mas ter de jungir-se à formalidade e à vigilância contínuas de regras o mais das vezes irracionais e profundamente impregnadas do maior carrancismo e moralismo autoritário, dignos dos mais inveterados mestres-escolas, de palmatória em punho, dos tempos dos nossos avós.

Se a exigência de “bom-comportamento” e austera seriedade está presente, mesmo sob a tênue capa da tolerância “informal” da modernidade, em cada instância de nossas vidas (do trânsito ao leito, passando pela escola e até pelo bordel) é no trabalho que ela, pela necessidade de submissão total que a dominação pressupõe, atinge o seu ápice.

O desconforto, o sofrimento físico e psicológico do homem transmutado em coisa, aferrado a ações automáticas, repetitivas (e, portanto, cansativas), fastidiosas e obnubilantes não são apenas uma conseqüência lógica das modernas formas e “imperativos” da produção, num mundo de complexidade tecnológica crescente, mas um componente ideológico necessário ao exercício do domínio. Não é possível obrigar um indivíduo a todo este sacrifício e degradação voluntários, senão imbuindo-lhe até a menor molécula do senso absurdo de auto-imolação, do dever de “ser útil” ou, pelo menos, do temor (reforçado pelo comportamento delatório e oportunista dos demais membros do rebanho) da autoridade e suas imposições de estrita e sisuda dedicação ao serviço (um cigarro ou uma gargalhada são um tempo “subtraído” imoralmente ao amo que alugou-lhe os braços ou a mente, assim como a menor satisfação pode trazer à tona o desejo de jogo, prazer e liberdade sepultados).

A exploração e o domínio carecem da sujeição do animal humano a cangas, encilhas e bretes tão violentadores, que esta se faz, forçosamente, presente não apenas no espaço exclusivo do lavor, sob pena de se esfacelar. Assim, a alimentação, o sexo, o lazer (a vadiagem institucionalizada), os mínimos momentos, peripécias e detalhes que formam o estofo dos nosso dias passam, imperceptivelmente, a ter “horários”, conteúdo, e mesmo formas de exercício, regrados e definidos não segundo as necessidades biológicas naturais ou as inspirações emocionais e decisões do nosso arbítrio individual, mas conforme as contingências do lucro que propicia a vida faustosa e sem sobressaltos de nossos amos.

Outro não é o cenário no qual o que sobra das horas dedicadas aos afazeres mal se presta às rotineiras atividades necessárias à manutenção da existência do rebanho de trabalhadores. Se examinarmos atentamente o tempo “livre” de que dispomos, constataremos que (quando o parco salário nos permite e a fadiga da jornada não nos converte em abúlicos adoradores dos deuses eletrônicos – rádio e televisão) nele nos resta uma atabalhoada luta contra o tempo limitado, destinado às compras, ao estudo, ao cumprimento protocolar e frio dos papéis familiares e sociais e, quando muito, ao divertimento insulso dos fins-de-semana periódicos. Uma existência mecanizada, em que se destina um tempo e um local obrigatórios para cada atividade, ainda que em flagrante contradição com as condições emocionais ou físicas do momento. Em que os sentimentos e interesses mais caros e profundos não podem, nem devem, segundo a ética vigente, manifestar-se a qualquer instante, mas subordinam-se e são sacrificados aos sagrados reclamos do trabalho. A própria folga da trabalhadora grávida, sob o título de licença-maternidade, caracteriza uma exceção que a produção econômica, assumindo a primazia, concede à natureza para continuar a perpetuar a vida!

Não é, entretanto, por não haver fuga possível (sem prejuízo da vida ou de um mínimo de dignidade humana) ao trabalho, que devemos nos sujeitar ao controle inelutável e doloroso da atividade assalariada, nem à interdição constante, em seu nome, dos deleites proporcionáveis por nossos corpos, emoções e intelecto. Não é, em suma, por ser um mal necessário que devemos organizar, e permitir que organizem, nossas vidas no interesse do trabalho, ao invés de trabalhar, o mínimo necessário e com a máxima liberdade e satisfação própria de seres dotados de razão e sensibilidade, para vivermos de forma válida e agradável.

Ubirajara Passos

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Um blog para lutar em defesa dos Servidores da Justiça do Rio Grande do Sul. Os autores propugnam pelos princípios republicanos; almejam uma sociedade justa

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